IMPLANTAÇÃO DO ESPANHOL NA ESCOLA BRASILEIRA: POLÊMICA E DESAFIOS
Elzimar Goettenauer de Marins Costa (UFMG)
Fernanda Castelano Rodrigues (UFSCar)
Luciana Maria Almeida de Freitas (UFF)[1]
OS ANTECEDENTES
A disciplina Língua Espanhola está presente em escolas brasileiras há quase um século. É de 1919, no Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, a primeira referência a sua presença nos currículos do que hoje é o ensino básico. Em 1942, o espanhol foi incluído, pela primeira vez, na grade curricular obrigatória brasileira por meio da Lei Orgânica do Ensino Secundário no 4.244/42, que determinava a sua inclusão no 2o Ciclo do Secundário, tanto no Clássico quanto no Científico.
Desde então, entre diferentes Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, mudanças políticas das mais variadas naturezas, ascensão e queda de ditaduras, fluxo e refluxo nas relações com os países hispano-americanos, o espanhol encontrava-se, nos primeiros anos do atual século, em ascensão gradativa, com implantação nas escolas básicas de forma mais significativa em alguns estados e menos em outros; em alguns, encontrava-se totalmente ausente, é preciso dizer.
Em 05 de agosto de 2005, foi sancionada a Lei 11.161 que torna obrigatória a oferta do espanhol em todos os estabelecimentos de Ensino Médio do país e faculta essa oferta ao Ensino Fundamental de 6º a 9º ano a partir de 2010. Entre as justificativas apresentadas pelo governo para a sanção dessa lei estava o argumento de que é necessário promover uma maior integração do Brasil com os países vizinhos, sobretudo aqueles que integram o Mercosul. No entanto, logo depois de sua aprovação, não faltaram nos jornais brasileiros e espanhóis que declarassem que a aprovação da lei era "una gran victoria da diplomacia española y latinoamericana"[2].
Em 2006, foram publicadas as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM) com um capítulo dedicado aos "Conhecimentos de Língua Estrangeira" e outro dedicado especificamente aos "Conhecimentos de Espanhol". No mesmo ano, houve a distribuição, por parte do MEC, de materiais (um livro didático, uma gramática, um dicionário bilingue e um dicionário monolingue) que foram encaminhados às escolas públicas que manifestaram seu interesse em implantar o espanhol ou que já haviam integrado esse idioma em sua grade curricular.
Nos últimos dois anos, houve um aumento considerável de vagas para professores de espanhol nas universidades públicas de diversos estados com o propósito de ampliar a capacidade de formação de professores para atuar no Ensino Básico.
Várias universidades e associações estaduais de professores de espanhol vêm realizando cursos de atualização e de formação continuada de modo a possibilitar aos professores conhecimento e aprofundamento dos conteúdos das OCEM, de metodologias, do uso de novas tecnologias e de seleção e preparação de materiais didáticos, dentre outros questões.
Neste momento, também está em curso o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para a seleção de livros de espanhol para o Ensino Fundamental de 6º a 9º ano que serão adquiridos e distribuídos pelo MEC a partir de 2011. Também já foi dado início ao PNLD 2012, pelo qual serão adquirido livros de espanhol para o Ensino Médio.
A POLÊMICA
No dia 4 de agosto de 2009, os professores de espanhol foram surpreendidos por uma notícia intitulada "Acordo vai permitir a difusão do idioma nas escolas públicas", divulgada pela Agência Brasil, informando que, naquela mesma data, havia sido firmada uma Carta de Intenções entre o MEC e o Instituto Cervantes (IC) mediante a qual esse centro de ensino, com sede na Espanha e nove filiais no Brasil, seria responsável “por formar professores brasileiros e tornar disponíveis recursos didáticos e técnicos para o ensino do espanhol nas escolas públicas”[3].
A notícia provocou estarrecimento e indignação em boa parte da comunidade de pesquisadores, professores e alunos de língua espanhola do Brasil, visto que o IC não é uma instituição brasileira de ensino superior, mas sim um "centro cultural" subordinado ao Ministério de Assuntos Exteriores e de Cooperação da Espanha. Sua finalidade é divulgar a língua e a cultura espanholas pelo mundo e sua principal atuação está na oferta de cursos livres de língua espanhola.
Esse Instituto não está, portanto, habilitado para formar professores ou interferir na preparação de profissionais e na elaboração de materiais para o ensino regular, muito menos no contexto brasileiro. O acordo contrariaria, então, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996, que atribui a formação de professores exclusivamente às universidades.
Ademais, antes de divulgar e disponibilizar recursos didáticos e técnicos dessa instituição, o MEC deveria promover licitação pública e, posteriormente, submeter todo o material a uma rigorosa avaliação quanto à pertinência de seus conteúdos e adequação ao contexto educacional brasileiro, tal como ocorre por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do qual participam professores especialistas de diversas universidades públicas brasileiras.
A indignação gerada pela publicação da referida notícia produziu reações imediatas: formou-se um grupo de discussão virtual (Yahoo Grupos: eledobrasil), criou-se um blog (www.espanholdobrasil.wordpress.com), realizou-se, na primeira semana de aulas do segundo semestre, uma ação conjunta nas universidades (Semana de Debates sobre a Implantação do Espanhol), enviaram-se cartas ao Ministério da Educação, fez-se um abaixo assinado e constituiu-se uma Comissão Permanente para o Acompanhamento da Implantação do Espanhol no Sistema Educativo Brasileiro, que conta, neste momento, com representantes de associações de professores, pesquisadores e de universidades públicas de 13 estados do país. Essas iniciativas tinham como propósito imediato a mobilização do conjunto de professores e alunos de espanhol de todo o Brasil para se incorporarem à reivindicação de esclarecimentos por parte do MEC bem como a publicação do texto da Carta de Intenções.
No dia 28 de agosto, um grupo de professores da Comissão Permanente foi recebido no MEC por representantes da Assessoria para Assuntos Internacionais, da Secretaria de Educação à Distância (SEED) e da Secretaria de Educação Básica (SEB). Somente nessa ocasião os textos firmados entre o Ministério e o IC chegaram às mãos dos principais interessados: os professores de espanhol.
A Comissão Permanente foi, então, convidada a analisar os documentos, enviar suas observações por escrito para que sejam apreciadas pelo Ministro e voltar ao MEC para novas reuniões.
A CARTA DE INTENÇÕES
Com seu original certamente escrito em espanhol e com uma tradução para o português no mínimo questionável, a Carta de Intenções entre o Instituto Cervantes e o Ministério da Educação da República Federativa do Brasil afirma ter como objetivo "estabelecer projetos de colaboração que contribuam para promover a difusão e promoção do ensino do espanhol e da cultura que é comum aos países hispano-falantes".
Trata-se de um documento assinado com o visível propósito de permitir ações diversas, que serão normalizadas por outros documentos específicos. Seu texto "guarda-chuva" inclui artigos amplos, mas que envolvem os principais aspectos da atuação que o IC deseja ter no Brasil, dentre os quais destacamos:
"- Oferecer apoio técnico ao Ministério da Educação da República Federativa do Brasil para a formação em espanhol de professores e alunos no âmbito das competências e de acordo com as finalidades e recursos do Instituto Cervantes.
- Cooperar na elaboração de materiais didáticos para o ensino de espanhol, colocando a serviço do Ministério da Educação da República Federativa do Brasil a experiência e os recursos do Instituto Cervantes.
- Divulgar, promover e facilitar o uso de novas tecnologias aplicadas ao ensino e ao aprendizado do espanhol como língua estrangeira.
(...)
- Apoiar o reconhecimento por parte das autoridades educacionais brasileiras dos diplomas de espanhol como língua estrangeira (DELE)."
É notável como o texto dessa Carta apresenta unilateralmente o ponto de vista do IC, enaltecendo suas qualidades ("instituição de reconhecido prestígio internacional", diz-se em um fragmento) e possibilidades de "colaboração", em detrimento das verdadeiras necessidades que possa apresentar o MEC ou a realidade com que o ensino de espanhol enfrenta em sua implantação no contexto escolar brasileiro.
O tom paternalista do documento contribui para armar um cenário de menosprezo pela capacidade do próprio MEC de reger seus interesses, pelas instituições brasileiras responsáveis pela formação de professores e pela confecção de materiais didáticos (virtuais ou não) produzidos no Brasil.
Ademais, o documento atribui ao Instituto Cervantes a capacidade e a função de aproximar o Brasil "da cultura que é comum a todos os países hispano-falantes", o que é questionável, pois essa instituição é subordinada ao governo da Espanha e, certamente, não foi autorizada pelos demais países hispânicos a representá-los internacionalmente ou a difundir suas culturas no Brasil ou em quaisquer outros países do mundo. Há uma grande e rica diversidade cultural que não pode ser reduzida a uma perspectiva unilateral.
Note-se, nesse sentido, que nessa Carta não há nenhuma referência a ações concretas que possam promover a integração regional ou ao Mercosul, questões que motivaram, como já afirmamos, pelo menos na justificativa, a aprovação da Lei 11.161.
É significativo que o MEC assine um documento que permita a uma instituição estrangeira que desconhece a realidade da escola brasileira dar "apoio técnico para a "formação em espanhol" de nossos professores e alunos. Aliás, o que significa dar "apoio técnico" para a "formação em espanhol de professores e alunos"? O que significa "formação em espanhol de professores e alunos"? Formar professores de espanhol? Atuar diretamente nas escolas para ensinar espanhol?
Devemos lembrar que a LDB, tal como já mencionamos, em seu artigo 62, afirma: “A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação”. Se o Instituto Cervantes não é uma universidade ou um instituto superior de educação, não tem, portanto, competência legal para formar professores no Brasil. Se as universidades são autônomas, como o IC poderia dar "apoio técnico" para a "formação" de professores por intermédio de um acordo com o MEC, assinado à revelia das instituições que efetiva e legalmente formam professores no Brasil?
A mesma LDB atribui apenas um significado à palavra "formação" de professores que, como visto no parágrafo anterior, é a habilitação em cursos universitários de Licenciatura para atuação no ensino básico. O vocábulo costuma aparecer com outro significado apenas se acompanhado do qualificador "contínua" ou "continuada". Será que o MEC não percebeu que "formación" não é "formação"? Que embora se equivalham em alguns contextos, isso nem sempre ocorre? Um curso de atualização ou de capacitação, um treinamento, uma especialização, oficinas, mini-cursos são "formación" quando se utiliza esta palavra em seus sentidos possíveis em espanhol, mas não são atividades de "formação" no português brasileiro e na LDB. Tais modalidades de "formación" poderiam representar o que chamamos no Brasil de "formação contínua" (ou continuada), mas não apenas e unicamente "formação de professores". Esse erro terminológico, um aparente lapso da tradução do espanhol para o português, constitui-se não apenas num problema de desconhecimento de certos falsos cognatos existentes entre ambas as línguas, mas, sobretudo, na evidência de que "falsos amigos" pode ser um termo que não se limita apenas ao âmbito lexical.
Outro item da Carta de Intenções que parece problemático é o que menciona "o reconhecimento por parte das autoridades educacionais brasileiras dos diplomas de espanhol como língua estrangeira (DELE)". O DELE, um exame de proficiência de língua espanhola que é equivalente ao Proficiency de Cambridge do inglês ou ao DALF do francês, já é reconhecido no Brasil em inúmeras instâncias, de acordo, evidentemente, com suas finalidades: comprovar o nível de conhecimento da língua espanhola daquele que o possui. Em várias universidades, o candidato ao ingresso em cursos de pós-graduação pode conseguir a dispensa da prova de línguas estrangeiras se possuir o DELE; o pós-graduando que vai realizar algum curso em países hispânicos também pode comprovar seu conhecimento da língua se apresentar o DELE.
No entanto, vale mencionar que o DELE não é o único diploma internacional de proficiência de espanhol língua estrangeira. Existe um projeto em curso, liderado pelos organizadores do DELE, para a confecção de um Diploma Pan-hispânico, que é alvo de questionamentos por parte dos outros países envolvidos e, por isso, não se concretizou, ao menos por enquanto.
É importante também ressaltar que, desde 2004, a Argentina também possui um diploma de proficiência de espanhol que é aceito em várias das mesmas instâncias: o CELU (Certificado de Español: Lengua y Uso).
Daí o fato de nos intrigar sobremaneira essa solicitação de "reconhecimento" do DELE. Que reconhecimento se está sugerindo? O de equivalência a um Bacharelado em Letras-Espanhol, curso que tem de 3 a 5 anos de duração, com disciplinas que vão da Língua Espanhola, analisada a fundo em seus aspectos comunicativos, gramaticais, discursivos e culturais, às Literaturas Hispânicas, passando, no mínimo, pela Linguística, pelo Latim, pela Teoria da Literatura e pela História da Língua? Não é preciso argumentar muito acerca do despropósito desse intento. Mas essa equivalência não só já foi permitida pelo MEC em outros tempos[4], como continua sendo desejada por alguns, apesar de fortemente rechaçado pelos formadores de professores de espanhol das universidades do Brasil.
O PROGRAMA EXECUTIVO ENTRE O INSTITUTO CERVANTES E A SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA (SEED)
Para concretizar a primeira das intenções manifestadas na Carta que referimos acima, foi realizado o Programa ejecutivo entre el Instituto Cervantes y la Secretaría de Educación a Distancia del Ministerio de Educación brasileño, que tem o objetivo de estabelecer as bases de uma experiência piloto com 30 professores e 600 estudantes brasileiros para a utilização de recursos didáticos virtuais do IC.
Em sua primeira fase, já ocorrida no último mês de agosto, 30 professores de cinco estados brasileiros receberam um curso, no IC do Rio de Janeiro, que os capacitaria a utilizar os recursos de Aula Virtual de Español (AVE) e Hola, amigos.
Na segunda fase, em implementação neste momento, os docentes envolvidos devem utilizar esses materiais de forma semi-presencial com grupos de 20/25 alunos pelo período de 3 meses.
Na terceira e última fase do projeto-piloto, o IC concederá, antes de outubro de 2009, informação e materiais relacionados com o ensino de espanhol.
Menciona-se nesse Programa também a possibilidade de que o Curso de Español a Distancia (CED), que o IC está preparando em colaboração com a RTVE, a Fundación SM e a SERVITECSA, seja cedido à SEED para utilização ainda nesta experiência piloto. O CED inclui programas de TV, material de áudio, livros de ensino de E/LE e guias didáticas.
Dessa forma, parece claro que, uma vez aprovada a experiência piloto, os métodos virtuais do IC passariam a ser oferecidos em todos as escolas públicas brasileiras. Métodos, cabe lembrar, preparados por uma instituição não escolar e estrangeira que formula seus materiais de acordo com os parâmetros do Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas, não com os nossos Parâmetros e Orientações Curriculares.
Também é importante ressaltar que essa experiência piloto já está sendo executada e que 600 alunos de escolas públicas das 5 regiões do país estão tendo aulas nas quais se utilizam conteúdos de um material de ensino virtual estrangeiro que ainda não passou pela análise de especialistas em ensino da língua espanhola a brasileiros, que deveriam ser convocados pelo MEC para avaliá-lo antes que ele tivesse “entrada franca” em salas de aula do nosso país.
OS DESAFIOS
Diante da proposta de utilização, nas escolas públicas da rede oficial de ensino do Brasil, do material virtual produzido pelo Instituto Cervantes e diante também de todas as possibilidades de “cooperação e colaboração” que a Carta de Intenções assinada pelo MEC e o IC nos colocam, cabe-nos indagar:
* Quem realmente deve ter a responsabilidade de formar professores de língua espanhola no Brasil? As universidades e faculdades credenciadas pelo MEC, seguindo as orientações da LDB, ou quaisquer outras instituições não regulares de ensino superior, nacionais ou estrangeiras que, mediante pactos e acordos unilateriais se dispõem a "colaborar" com essa formação?
* Que papel desempenhariam os professores das escolas públicas? Seriam meros aplicadores de um método (“tutores”) e perderiam sua função de agentes educativos envolvidos no planejamento das atividades docentes?
* Como estaria presente, em dito curso virtual formulado por uma instituição forânea, o lugar educativo e formativo da língua estrangeira no currículo da escola básica, tão bem descrito nos Parâmetros Curriculares Nacionais e nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio?
* Que modelo de cidadão pode promover esse tipo de ensino que possui um público-alvo cujas realidades sócio-históricas, económicas, culturais e mesmo linguísticas são tão diferentes das de nossos estudantes brasileiros?
* Se a parceria com o Instituto Cervantes de deu devido ao interesse da Secretaria de Ensino a Distância de otimizar o uso das novas tecnologias nas escolas, estaríamos diante de uma iniciativa que estimularia o ensino de espanhol na modalidade não presencial?
* Finalmente, a quem este tipo de ensino vai incluir? E a quem ele vai, certamente, excluir?
[1] Membros da Comissão Permanente para o Acompanhamento da Implantação do Espanhol no Sistema Educativo Brasileiro. As autoras desejam expressar seu agradecimento a Neide Maia González (USP), Suzana Mancilla (UFMS) e Valesca Brasil Irala (Unipampa) pelas sugestões que sua atenta leitura nos proporcionou.
[3] Disponível em http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=14072, acesso em 07/09/2009.
[4] O Parecer 26, de 6 de agosto de 1996 dava aos portadores do DELE Superior o direito de cursar uma Complementação Pedagógica e, com ela, a ter a equiparação com a Licenciatura em Espanhol. A assinatura da LDB, em dezembro do mesmo ano, derrubou esse Parecer.
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